Um
novo futuro a jovens que tentam reescrever a própria história
Fundação Casa III de Sorocaba oferece ensino, arte e cultura,
esportes e educação profissionalizante a adolescentes infratores em regime de
internação
Reportagem e fotos: Lucas Montenegro
Infográfico: Jarbe Gilliard
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Jovens têm aulas das 7 da manhã ao meio-dia e vinte; classe do Ensino Médio aprendendo Matemática |
Arthur de Sousa, 17 anos, tem o
desejo de cursar uma faculdade de Artes. Descobriu que gosta de desenhar. Já
Pedro Henrique, 15, vislumbra um futuro para si nos Estados Unidos. “Minha tia me
mandou uma carta, dizendo que eu podia ir para lá”, conta o adolescente. Antes,
porém, uma condição: deve se formar técnico em mecatrônica. “Saindo daqui eu
vou correr atrás desse curso, pegar o visto...”.
Entre os dois jovens e Jonas Alves, também
de 17, uma preferência em comum: a matemática. “Consigo fazer bem
as contas. A professora é boa, explica bem as aulas”, diz Jonas. Pedro divide ainda a simpatia pelos números e equações com o
Português – quer aprimorar seu vocabulário. Por isso também lê livros, e os jornais
são “para ficar por dentro do que está acontecendo”.
Os adolescentes - apresentados com nomes fictícios para preservar suas
identidades - são internos da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) III, localizada no bairro
Aparecidinha, em Sorocaba. Ali cumprem medidas socioeducativas em regime de
internação junto a outros jovens de municípios vizinhos.
Eles conversam sem demonstrar revolta ou autocomiseração, e em suas vozes ora tímidas, ora confiantes, nenhuma afetação
de sentirem-se injustiçados. Cometeram erros, sabem disso. Demonstram vontade
de mudar. Jonas, por exemplo, tem uma irmã pequena, de cinco anos. E a menina
tem essa mania comum às crianças: se ela vê o Jonas, o pai ou a mãe fazendo
alguma coisa, ela faz também! “Quero dar outro tipo de exemplo”, explica o
rapaz, ao se referir à influência que sua conduta poderia exercer na irmãzinha.
Para “darem outro tipo exemplo” - ou
para realizarem o desejo de “ser alguém na vida”, como definiu Pedro -, os
adolescentes adquirem na Fundação Casa, dia após dia, ferramentas que são e
serão fundamentais quando retornarem à sociedade: educação, cultura, noções de
um ofício.
Em busca do tempo perdido
A escola da Fundação Casa segue a
mesma grade curricular da instituição de ensino a que está vinculada, explica a
coordenadora pedagógica da unidade de Sorocaba, Luciana Monteiro. Nela também
são oferecidos os ciclos Fundamental, Fundamental 2 e Ensino Médio. As aulas começam às 7 horas da manhã e cada
aula tem 50 minutos, com 20 minutos de intervalo.
O jovem internado prossegue seus
estudos “lá” dentro a partir do último ano em que estava matriculado “aqui”
fora. A taxa de defasagem escolar costuma ser alta. “A gente tem adolescente
que chega aqui com 15, 16 anos, que realmente não sabe ler. Não consegue
escrever uma carta para a mãe, por exemplo”, constata Moisés Martins, diretor
da unidade.
Os efeitos, então, de serem até
mesmo alfabetizados em alguns casos – e de se sentirem capazes de se
comunicarem sem a ajuda de outros - costumam ser estimulantes a eles, indica o
diretor. “Psicologicamente, isso eleva bem a autoestima do adolescente. Isso
traz uma transformação muito grande no ser.”
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O diretor Moisés Martins e a coordenadora Luciana Monteiro; centro socioeducativo, assim como os outros, segue o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a política do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) |
Para tentar sanar esse problema de
defasagem escolar existe o Projeto Revitalizando a Trajetória Escolar (PRTE),
que prevê avaliações do rendimento cognitivo e da evolução das competências dos
jovens. “Se o interno consegue ir bem nessa avaliação, ele conclui o Ensino
Fundamental e vai para o Médio”, esclarece Luciana Monteiro, que diz que este
ano já há um número maior de internos cursando o Ensino Médio em relação aos
anos anteriores.
Em minha arte ou ofício
Com
exceção das grades pintadas de azul, da vigilância constante e dos portões
hermeticamente fechados, a Fundação Casa de Sorocaba em tudo se assemelha a uma
escola normal: o pátio, aberto ao céu, ali uma mesa de ping-pong; a quadra,
pouco mais ao fundo, onde os jovens praticam esportes; a sala de
informática; a biblioteca. Atrás de suas paredes e de suas estantes
de livros, uma horta cultivada pelos adolescentes com o mesmo esmero que cuidam
das flores e dos canteiros de grama aparada.
No período da tarde, os jovens têm a
opção de participar de algumas das 11 oficinas profissionalizantes – entre elas
horticultura, jardinagem (aplicadas na paisagem da Fundação), confeiteiro,
panificação artesanal, web – e de atividades de arte e cultura, como teatro e
percussão. Isso é possível por meio de convênios mantidos pela Fundação com o
Centro Paula Souza, com o Projeto Guri e com o Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC).
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Medidas preveem advertência, reparo ao dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e, em último caso, internação; aos sábados é permitido aos jovens receberem visitas de familiares |
"Não queria saber de nada de mim"
Para
além das dificuldades presumíveis, os benefícios dessa fase de
aprendizado, de autoconsciência e treinamento são relevantes para os jovens, tanto social quanto intelectualmente, eles contam. “Antes eu tinha muita vergonha. Tinha muita
vergonha de chegar, falar com as pessoas, pedir alguma coisa. Hoje, não. Escola
mesmo eu não ia lá fora. Não queria saber de nada de mim”, lembra Arthur. Ele
já participou, além da classe de Ensino Médio que frequenta, dos cursos
profissionalizantes de pizzaiolo, salgadeiro e jardineiro.
No final do ano,
Arthur pode, caso queira, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – quem sabe
pleitear uma vaga em uma universidade? “Quando acontece [do interno ser
aprovado em uma universidade], e o menino já concluiu as metas do PIA [Plano
Individual de Atendimento], a gente pede ao juiz a progressão ou extinção da
medida para que ele possa dar continuidade à sua vida”, afirma o diretor da
unidade.
Pedro Henrique - o que recebeu convite
da tia para ir ao estrangeiro - fez teatro, percussão e as oficinas de
informática e doceiro, “coisas que dá para utilizar lá fora”. “Uma coisa que eu
sei que pode estar influenciando meus familiares. No futuro, mais para frente,
se eu tiver filho...”. Jonas também se afeiçoou ao teatro, porque “ele mexe bastante
com o corpo, mexe com a mente da gente”.
"De vez em quando a
gente encontra alguns deles pela rua e “oh, senhor, tô trabalhando, já casei, tô namorando...". Isso é corriqueiro numa cidade que não é tão grande, igual Sorocaba. A gente
encontra muitos meninos trabalhando no mercado, às vezes numa loja, num açougue. Isso leva a gente a acreditar ainda mais no nosso
trabalho", define o diretor Moisés Martins.
Por volta das 20 horas, após
jantarem, os adolescentes internos da Fundação Casa III de Sorocaba se recolhem
em seus dormitórios, que abriga 6 ou 7 adolescentes cada, com chuveiros. Às 22
horas as luzes da unidade são apagadas para que eles descansem para um novo
dia que virá.
“Eu fui percebendo que eles têm um
potencial incrível se tiver alguém ao lado deles”
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A professora Ivonete deve se aposentar daqui há dois anos. Promete ir até o fim da carreira dando aulas na Casa |
Em
2000, eu dava aula num bairro que é considerado um dos piores de Sorocaba: Nova
Esperança. E eu me dei muito bem no meio daquelas crianças. Eu dava aula para a
quinta série. Eu buscava a necessidade deles. Então eu não era só professora de
Português para eles, eu dava aula de higiene, comportamento. O que eu ensinava
aos meus filhos em casa eu queria ensinar aos meus alunos em sala de aula.
Aí
surgiu [a Fundação Casa], nessa época era concurso para entrar, e minha
coordenadora falou assim: “Ivonete, você tem perfil para entrar lá dentro. Vá
fazer o concurso.” E eu, meio contrariada, meu marido, advogado, meio
contrariado. Mas eu fiz. Passei e comecei a trabalhar aqui. O primeiro ano foi
um choque. Porque eu não sabia que existia esse submundo. Eu não sabia que as
famílias estavam desse jeito. Porque eu sou mãe de dois filhos e meus filhos
seguiram o tempo cronológico: crianças, adolescentes, adultos. Quando eu
cheguei aqui, me deparei com meninos de 14 anos que eram homens. E já na vida
do crime.
Eu
dava aula aqui, e ao mesmo tempo dava aula lá fora. Quando eu saía daqui de
manhã, e eu ia para o [colégio] Reverendo Ovídio, as professoras de lá falavam
assim para mim: “Ivonete, você está destruída.” Mas aí eu falei não, eu não
posso me deixar levar por isso, eu tenho que continuar o meu trabalho lá
dentro. Eu sei que não posso endireitar o mundo, mas o que eu tenho a
oferecer acho que vai servir para alguém.
Daí
fui mudando meu jeito de ser, aceitando mais as coisas. O tempo foi passando e
eu fui percebendo que eles têm um potencial incrível se tiver alguém ao lado
deles. Hoje eu entro na minha sala e vejo um menino que conta uma história de
vida terrível, de arrepiar. Ele é culpado!? Então vamos tentar buscar dentro
dele o que ele tem de melhor. Foi isso que me fez continuar.
Eu
cheguei a dar, além das minhas aulas, curso profissionalizante aqui dentro. Eu
dei curso de garçom. Você precisava ver aqueles meninos aproveitarem aquele
momento, aprenderem e depois ensinarem às próprias mães que vinham aqui.
A
maioria deles demonstra interesse [em continuar os estudos], mas, você já sabe,
sai lá fora, tem os “amigos”... Qual é a primeira palavra do “amigo”? “Tenho
uma aqui, vamos fumar comigo?” E a maioria não tem alicerce...
Porque
eles gostam de ser cobrados. Aqui dentro eles aprenderam assim, então é um
respeito que eles têm. Muitos daqui eu tenho o prazer de encontrar lá fora,
trabalhando. Acho a coisa mais linda. Eles vêm: “Ei, senhora Ivonete, olha, eu tô aqui, tô trabalhando”. Eles fazem questão de
mostrar.
Só
de você ver um menino que não tinha entusiasmo nenhum, que sabia escrever, mas
nem se lembrava mais, hoje você pega o caderno desse menino, tem uma letra
linda, tem uma postura... Isso para mim é mais do que uma gratificação, é uma
conquista.
Eles
se importam se meu cachorro está bem! Eu fiquei numa felicidade imensa quando
fui avó, e eles até hoje tem a preocupação de perguntar: “Senhora Ivonete, seu
netinho está bem?” Eles falam para mim: “Quando eu sair, eu posso ir até sua
casa?” Minha resposta: “Se você estiver seguindo esse caminho que nós mostramos
para você, você será bem recebido.” E eu fico muito contente, eu não deixo de
cumprimentá-los onde encontro.
O
que eles não tiveram lá fora foi isso. E eu friso para eles, sempre: “Dessa
porta pra cá, nós somos escola de Brigadeiro Tobias. Eu sou professora e vocês
são alunos. Então, o que vocês perderam de tempo lá fora, recuperem aqui
dentro. Isso é cumprir uma medida socioeducativa, é você resgatar tudo aquilo o
que você perdeu de bom.”
Então isso aqui, para eles, é o primeiro degrau de uma
escada imensa.
- Ivonete Teixeira Gomes é professora da Fundação Casa de Sorocaba há 15
anos. Dá aulas de Português e Artes aos adolescentes. O texto acima são trechos
extraídos de uma entrevista.