Combate
às desigualdades raciais deve (ou deveria) começar na escola
Curso
da UFSCar prepara professores de Sorocaba e região para que eles possam desconstruir, em sala de
aula, posturas e mecanismos que fomentam o racismo
A falta de representação de suas histórias, culturas e
identidades raciais é algo que pode fazer com que milhares de estudantes sintam-se
deslocados no ambiente escolar. Embora haja meninos e meninas negras, orientais
e de origem indígena nas classes infantis, as bonecas, brinquedos, as personagens
dos desenhos animados, filmes e livros a que essas crianças têm contato
costumam seguir um padrão: são brancas. De olhos claros. Detentoras do
protagonismo.
Apresentado pelas professoras Rosana Batista Monteiro, do Departamento de Ciências Humanas e Educação (DCHE) do Campus Sorocaba da UFSCar, e Vanessa Ferreira, da rede de ensino infantil do
município, este é só um exemplo que pode revelar, por seu simbolismo, uma
realidade muito maior presente na sociedade e, por efeito, no nosso sistema
educacional: o racismo.
Escola e democracia racial
Uma pedagogia anti-racismo, como define Rosana Monteiro, que
apresente nas escolas a diversidade do povo brasileiro e ajude no surgimento de
uma verdadeira democracia racial no país - onde todos, independentemente da
cor, terão condições e oportunidades iguais – é a finalidade do curso “Formação
de formadores para a educação das relações étnico-raciais”, coordenado pela
docente na UFSCar.
A atividade de extensão é desenvolvida quinzenalmente aos
sábados e tem 60 alunos entre estudantes de licenciaturas e, em sua maioria, professoras
das redes de ensino de Sorocaba e municípios da região - Vanessa é uma delas. O curso é dividido em
três eixos temáticos: “Racismo, preconceito e discriminação: conceitos e concepções”, “Políticas de
Ação Afirmativa” e “Propostas de implementação das DCNERER na escola”.
Aula sobre Clóvis Moura, sociólogo e historiador que publicou, entre outros estudos, a Sociologia da Práxis Negra |
O primeiro eixo trata do que se entende por preconceito e
discriminação, como eles foram sendo constituídos ao longo do tempo e o que são,
contemporaneamente, os conceitos de raça e racismo. A ideia é “discutir como as
desigualdades raciais são produzidas e reproduzidas e o impacto que elas têm
ainda hoje”, resume Rosana.
O segundo eixo trata principalmente da Lei de Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER),
sancionada em 2003 pelo Governo Federal, que altera a Lei de Diretrizes Básicas
(LDB) e obriga as escolas a incluírem o tema em suas grades a partir do Ensino
Fundamental. Essa parte do curso, diz
Rosana, procura “trazer para o professor esse referencial da norma não só para
que ele cumpra a lei, mas para que ele entenda o porquê, as razões dessa
legislação existir e como é que ele pode colocá-la em prática.”
O terceiro e último momento da atividade se propõe a
discutir o cotidiano da escola, o seu projeto político-pedagógico no que diz
respeito à educação para as relações étnico-raciais e a melhor maneira da
implementação efetiva de uma pedagogia que tente desmontar as posturas e ideologias
que estimulam o preconceito.
Formação má, história mal contada
Para Ademir Barros dos Santos, pesquisador, escritor e integrante
do movimento social negro de Sorocaba, as ações previstas na lei do DCNERER, embora
boas e necessárias, estão longe de serem aplicadas satisfatoriamente – em dado
momento, chega a se referir a ela como “letra morta”, por sua inserção irrisória nos currículos de cursos universitários, por exemplo.
Rosana Monteiro concorda que a legislação, que completa 12 anos em
2015, ainda é insuficientemente exercida. “O número de escolas de Educação
Básica, e mesmo na Educação Superior, que estão colocando isso em prática ainda
é bem pouco significativo. Nós temos experiências excelentes, que estão sendo identificadas
e estudadas, mas a extensão da implementação da lei ainda está longe de ser
considerada ideal”, reconhece.
A história da população negra ainda é muito distorcida e
estereotipada na maior parte das escolas, segundo Ademir. “A África é
contemplada como se em 1500 tivesse caído um monte de terra. E caiu com força,
porque bateu no oceano e saiu espalhando escravo para todo lugar. Porque a
África aparece assim na história, não é? Aí você, de fato, não está colocando
na cabeça de alguém um pingo de alegria por pertencer àquele povo”, critica.
“Não houve evolução, o que há é mais discussão”, completa, fazendo um paralelo
entre o que era ensinado em seus tempos de aluno e agora.
Uma das lacunas nocivas à compreensão real da história,
de acordo com Ademir, é a ausência do relato sobre o negro livre - quer por
fuga, quer por conquista da liberdade - como interlocutor da sociedade, agente
social importante em seu meio, em contraposição à reprodução reiterada da
imagem típica do escravo: sempre degradado e submisso. Um retrato que é, segundo o pesquisador, por vezes aceito e passado, inclusive dentro de casa, de pais para filhos negros, como se fosse algo irrevogável e, pior, natural. “Então essa criança de
quatro, cinco anos, aprende uma situação de subalternidade. Que aquele é o
lugar dela.”
Desconstruir estigmas que vêm de 344 anos de escravidão no
Brasil e barreiras sutis que mantém a maioria dos negros, ainda hoje, nas
periferias das cidades, não é tarefa fácil nem tampouco rápida. Esse racismo – já
institucionalizado, segundo Rosana e Ademir - influencia a maneira como os
próprios gestores educacionais enxergam a questão. “Muitas vezes há uma
barreira imposta pela diretora, pela coordenadora, que diz que o professor está
trazendo para dentro de sala de aula conflitos desnecessários. Então você
continua eurocêntrico e está tudo certinho, viu?”, provoca Ademir.
Professora da rede de ensino infantil de Sorocaba e aluna do curso da UFSCar, Vanessa Ferreira concorda que há insegurança
por parte do corpo docente em tratar das desigualdades raciais nas escolas: medo
de constranger o aluno que discrimina e mesmo o que sofre com as discriminações.
Falta material didático e diálogo, diz ela, mas acima de tudo formação aos professores. “Muitas vezes a gente finge que não existe. O tema é tratado como
se já estivesse resolvido.”
(Reportagem e fotos de Lucas Montenegro)
(Reportagem e fotos de Lucas Montenegro)
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